terça-feira, 10 de novembro de 2009

Espiritualidade do Caminho


A espiritualidade nada mais é do que o viver a vida em suas múltiplas dimensões individuais, sociais e espirituais. Contudo, do ponto de vista da teologia paulina, existem apenas duas grandes categorias ou modos de se viver: ou somos da raça de Adão ou da raça de Cristo.

Em nossos dias, temos diversas expressões de espiritualidade cristã e diversas explicações teológicas para a espiritualidade cristã. Na modernidade tardia, os modismos são incontáveis e infelizmente muitos deles chegam a ser ridículos. Será que isso seria um problema? Será uma questão apenas de diversidade?

Assim como a espiritualidade judaica se transformou numa espiritualidade babilônica no período pós-exílico, a espiritualidade cristã parece que se transformou numa espiritualidade pagã desde o século I d.C. (I Jo 2:18-19). As designações católico, evangélico ou cristão, principalmente na atual fase da história, não significam muito do ponto de vista bíblico, pois a vida cristã começa por uma mudança interna, muito mais profunda que apenas uma decisão ou uma filiação a um grupo religioso cristão.

Um breve olhar sobre a continuação da história do povo de Deus nos séculos seguintes ao período apostólico, e logo notaremos as amálgamas criarem problemas. Nota-se porém antes, que a espiritualidade apostólica ou dos primeiros discípulos era uma Espiritualidade do Caminho. Esse modo e estilo de vida incomodou o fariseu Saulo e este manifestou grande fúria contra Cristo e seus discípulos (At 9:1-2; 22:4-5), pois se tratava de uma espiritualidade da cruz e da graça; a sua ascendência e todas as suas obras foram desvalorizadas (Fl 3:5). Saulo experimentou uma profunda crise existencial por isso (At 9:9). Eu também até hoje fico chateado por Deus não me recompensar por meus méritos, e você? Sempre fico tentando ser um "cristão espiritual", mas percebo que no fundo, faço isso por interesse e não por amor.... É necessário ter as nossas intenções renovadas.

Esse modo e estilo de vida do caminho só nasce após a nossa morte e após a nossa união pessoal com Cristo (Rm 6:4-5). Deus condenou com antecipação o velho estilo de vida da raça humana e revelou isto ao apóstolo Paulo. Quando ele escreve aos gálatas, percebe-se um Paulo totalmente diferente e consciente de que existe uma descontinuidade entre a velha e a nova vida em Cristo. O ego e o mundo são opostos ao Senhor Jesus Cristo (Gl 6:14) e nada que lhe fazemos no velho homem pode agradá-lo (Rm 8:7-9). Lucas era apaixonado por este viver no caminho, e quando escreveu sua história da "seita do Caminho" (Atos) sabia que era necessário pregar e ensinar o evangelho do reino de Deus, um evangelho que anuncia que precisa haver uma descontinuidade. O apóstolo João também conhecia muito bem o Caminho, e sabia da impossibilidade de chegarmos a Deus Pai por outro caminho que não fosse Cristo (Jo 14:4-6; 14:17-20). Ambos sabiam que não significava simplesmente uma mudança de hábitos, de grupo social, de linguagem, enfim, sabiam que Deus fez uma escolha eterna, e não adiantaria querer aperfeiçoar o velho homem, nem o sistema das relações humanas que se formou após o pecado (Jo 18:36). É preciso começar tudo de novo.

No pessoal do caminho havia temor em relação ao Senhor Jesus e muitos até confessavam publicamente seus pecados, abandonando inclusive as artes mágicas (At 19:19). Naquela época, nenhum nome crescia, nem estavam preocupados com grandes homens e seus êxtases, mas sim com um único homem, que era também divino, Jesus Cristo (At 19:20). Na Idade Média a espiritualidade cristã foi caracterizada por uma vida de tremor e uma teologia caimita que ignorou o modelo proposto por Deus (Jd 11); com poucas exceções nos parece... só Deus sabe perfeitamente o que aconteceu nesse estranho período histórico da humanidade! Fato concreto mesmo, foi que Lutero percebeu claramente que a hipocrisia dos fariseus havia ressurgido com grande força, poder e de forma institucionalizada (Mt 23:28). O cristianismo estava parecido com a seita dos fariseus e dos saduceus. Hipocrisia, vontade de poder e apego as tradições partidárias.

Bem, voltando dessa viagem histórica para nossos dias, o teólogo Zabatiero, a partir de sua teologia profundamente bíblica, apontou dois erros teológicos relacionados a espiritualidade cristã que acho importante refletirmos, pois é a teologia que nos ajuda no discernir as práticas contemporâneas. Veja os erros: 1) desvincular o Espírito Santo da Trindade. Nas teologias informais do século XX percebe-se claramente que a Trindade foi esquecida e que o contexto hedonista e pragmático combina mais com um "espírito santo" que nos traz prazer e nos ajuda a conquistar nossos objetivos capitalistas (há boas exceções evidentemente). 2) confundir estado emocional com "ser espiritual". Em vários eventos e cultos, podemos observar que o sentir é confundido com uma experiência espiritual genuína. Não que devemos sufocar nossas emoções evidentemente, mas devemos nos questionar: o Espírito Santo não deveria proporcionar pessoas santas, separadas? As experiências que experimentaos nos levaram a um desejo de santidade? Ora, se Ele é santo a consequência deveria ser santidade....

Depois de uma brevíssima olhada na história e uma breve reflexão teológica, gostaria de destacar algumas experiências ou processos da Espiritualidade do Caminho, a qual estamos fazendo menção. Aqui, mais uma vez, gostaria de utilizar algumas categorias teológicas de Zabatiero. Primeiramente, a espiritualidade do caminho passa pela experiência de participação. Para entrar no caminho é preciso primeiro participar do Espírito do Senhor e do corpo de Cristo (II Pe 1:3-4). O novo homem volta a ser um homem coletivo, incompleto em si mesmo como no princípio, mas agora unido com Cristo, ou Cristo habitando no homem. Na verdade, nunca deixamos de ser um homem coletivo, mas nossa tendência após o pecado de Adão é individualista (Gn 3:12).

Em segundo lugar, é preciso passar pela experiência de liberdade. Ser liberto é ser liberto do mundo, dos poderes do mundo e do pecado. Esta liberdade é nos dada para podermos ser santos, ou seja, poder viver para Deus. Assim como os hebreus foram libertos da escravidão no Egito, precisamos ser libertos de muitas coisas. O império das trevas parecia ser uma boa proposta...ter autonomia na vida, viver sem um Deus que nos incomode com sua vontade forte e privadora, ser um homem divinizado, etc. ... felizmente tudo mentira, pois viver sem Deus é um grande absurdo! Viver com Deus, isso sim é liberdade. Ter total livre-arbítrio é uma fantasia humana impossível. Tudo que escolhemos é condicionado, limitado, restrito. Nosso livre-arbítrio fica muito melhor sob a soberania de Deus. Os grandes arquitetos do mundo acham que podem construir um mundo melhor, e os filósofos se perguntam se realmente Deus administra o mundo corretamente e com justiça. E eu na minha insensatez, frequentemente acho que Deus é injusto. Mas graças a Deus que Deus é Deus!

Em terceiro lugar,
é preciso passar pela experiência de conflitividade escatológica. O reino de Deus vai ser implantado por dois grandes atos (a cruz e a segunda vinda de Cristo), e isso quer dizer que já experimentamos muitas transformações, mas ainda aguardamos algumas outras. Passar por crises, sofrimentos, problemas nos leva a confiar totalmente no Senhor, pois nessas circunstâncias podemos ver que ainda estamos sendo salvos e que a transformação completa só acontecerá na parousia - retorno de Cristo (Ap 21:4-5). Já somos salvos de todas as consequências do pecado, mas ainda não perfeitamente! Neste ponto que os estilos de vida cristã mais se diferenciam. Creio que deva haver um equilíbrio: alternar entre a forte expectativa da vinda de Cristo e a vida no presente século.

Em quarto lugar,
é preciso passar pela experiência de transformação pessoal. Há uma necessidade de nos entregarmos a Cristo para sermos aperfeiçoados por Ele e por meio dEle. Trata-se de uma desistência da velha vida autônoma e de uma entrega ativa para o Senhor. Segundo Tozer, é necessário que ele nos vença, nos conquiste, pois nós lutamos contra Ele, muitas vezes. Os pensamentos precisam mudar, as emoções precisam ser equilibradas e as vontades enfraquecidas para podermos caminhar pelo caminho do reino de Deus. Andar com Cristo Jesus em casa, no trabalho, na diversão é sinônimo de transformação. Não podemos porém ser obsessivos por mudanças rápidas, até porque os caminhos de Deus são inescrutáveis (Jó 5:8-15). A nossa preocupação deve ser estar sob seu reino ou sob seus domínios.


Por último,
é preciso passar pela experiência de criatividade sociocultural. A vida nos agrupamentos humanos precisa do Criador e dos pequenos criadores imitadores de Deus. Os valores, os objetivos e os prazeres humanos precisam do Espírito de Cristo. Podemos deixar o valor do "lucro" e do "sucesso social" de lado e criar escolas, lojas, indústrias, associações, etc., voltadas para todos e não para uns poucos mais fortes que herdaram ou acumularam capitais, e por isso, se sentem grandes faraós ou pequenos faraózinhos quando não tem tanto poder. Cooperação e não competição deveria ser nosso valor social, pois esta última só é adequada ao esporte ou as brincadeiras. Competir na vida não tem graça nenhuma, ainda mais quando se pratica uma competição violenta, que assassina sonhos e projetos dos mais fracos! Nós somos assassinos quando não permitimos o outro desfrutar de uma vida que Deus planejou (I Jo 3:15-16). Medir uma pessoa pela sua capacidade produtiva é satânico e cabalístico!

Ainda no presente século podemos experimentar sim, relações de uma microeconomia cristã. Se não der a nível institucional (pois este nível depende de ações políticas formais), pelo menos entre o povo de Deus isso é perfeitamente possível (At 2:44-47). Para uma santidade econômica, basta termos santos submetidos aos planos de Deus e com vontade de criar. A santidade política também pode ser experimentada. Precisamos de pessoas que se preocupem com as ovelhas de Deus e tenham verdadeira vocação pastoral.

A espiritualidade do caminho então, é uma espiritualidade integral. Os dualismos relacionados a espírito e corpo, mundo natural e mundo cultural são gregos, são coisas da humanidade. Creio que uma espiritualidade do caminho é um bom modelo e um bom estilo de vida, mas não devemos esquecer que ela só inicia depois de tomarmos a cruz e seguir a Cristo. Amém!

2 comentários:

  1. Acho que também precisamos de mais líderes dispostos a se envolver nessa espiritualidade.
    As vezes sinto muita vontade de me lançar nesse campo, de evangelizer, mas o medo e a prisão que me segura nos compromissos da vida, ainda é maior que a confiança, infelizmente.
    Talvez ainda falte pra mim esquecer a parte de me aperfeiçoar e sim começar denovo, me entregar inteiramente e confiar em Deus. Deixar de viver na escravidão da carne e passar a viver a maravilhosa liberdade de Cristo, sob a soberania de Deus.

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  2. Olá. Bom o texto. Aproveito para deixar o endereço do meu blog. Se der passe por lá: http://filhoimperfeito.blogspot.com/

    Abraço

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